A Capacidade para Crer, Confiar, se Interessar

segurança 4Com frequência recebo e-mails dos leitores do Blog. Geralmente, os leitores que me escrevem são pais, educadores, colegas de profissão, estudantes e pessoas interessadas em obter informações sobre um tema específico de interesse pessoal. Um tema recorrente nos e-mails recebidos foi “a dificuldade para crer, confiar, se interessar comumente manifesta por crianças, adolescentes e jovens e, evidenciada pelos educadores nas salas de aula; pelos pais em casa e nas relações em família e, finalmente, percebida também por religiosos e educadores responsáveis pelo ensino religioso ou educação religiosa de crianças, adolescentes e jovens. Dos questionamentos e dúvidas que me alcançaram se depreendeu o tema: “A Capacidade para Crer, Confiar, Interessar-se”.

Durante a reflexão e estudo do tema, adveio-me à mente, à lembrança dois autores cujas vidas profissionais estiveram dedicadas ao estudo do desenvolvimento humano e pessoal das pessoas em família e em sociedade. A saber, Erik Erikson e D.W. Winnicott. Do pensamento do Erikson me ative à célebre obra “Infância e Sociedade” publicada em 1950. Do pensamento de Winnicott me ative em caráter pontual à Conferência proferida por ele em 05 de junho de 1968 a educadores e religiosos em um “Congresso sobre a Pregação do Evangelho em Família”, promovido pelo Instituto Educativo de Cooperação Cristã, no Kinsgwood College for Further Education sob o título:  “Aprendizagem Infantil”.

Winnicott iniciou a leitura de seu trabalho esclarecendo que estava ali “na condição de ser humano, médico de crianças, psiquiatra de criança e de psicanalista. Uma pessoa que tem uma larga experiência em um campo limitado, que se interessa pelos problemas do crescimento, a vida e a realização do ser humano, interesse pelo ser humano em desenvolvimento na família e no meio social”.

Naturalmente, os organizadores do Congresso queriam um parecer psicológico de Winnicott sobre os problemas comuns e recorrentes no processo de aprendizagem, formação e ensino das crianças, adolescentes e jovens. Problemas comumente  evidenciados na dificuldade para crer, confiar, se interessar. Pois, os responsáveis pela educação religiosa e os educadores em geral se queixavam da evidente falta de interesse das crianças, jovens e adolescentes. As queixas eram de que durante as aulas eles falam o tempo todo, não demonstrando o menor interesse pelos assuntos lecionados. E se são chamados à atenção demonstram condutas que vão da indiferença à omissão e da agressividade ao deboche direcionados aos educadores e docentes. Em âmbito familiar a queixa resume-se na falta de interesse em geral. Ainda hoje o problema persiste.

Father and son readingCom frequência, os pais também reclamam da falta de interesse dos filhos. A falta de interesse pelas tarefas escolares, leituras em geral e, de  um bom livro e a quase tudo o que se refira à cultura geral. Contudo, eles conseguem encontrar causas para tais desinteresses. Em geral atribuem a falta de interesse pelas tarefas escolares ao professor ou professora, enfatizando que eles são chatos, antiquados, utilizam uma pedagogia antiquada que segundo os pais: “nem no nosso tempo de escola suportaríamos esse rítmico. As crianças de hoje são mais espertas e precisam que os professores sejam mais dinâmicos”. Até certo ponto, os pais têm razão. Entretanto, a ausência de uma pedagogia dinâmica nas escolas pode ser a causa da falta de interesse pela educação escolar e mesmo por outras atividades educacionais em âmbito familiar? Imagino que não! A quê, então, se poderia atribuir a mencionada falta de interesse manifesta por crianças, jovens e adolescentes? A resposta é pessoal e proporcional à situação com a qual os cuidadores estão lidando e vivenciando! E os cuidadores a encontrarão respaldados por auxílio de um profissional que os ajudará a refletir a dinâmica de funcionamento familiar na qual se desenvolvem ou se desenvolveram os bebês e as crianças.

Entretanto, lembro-me que certa vez, Winnicott escreveu que “ninguém pode ensinar aos pais serem pais”. Contudo, hoje essa máxima deveria ser repensada, considerando tudo aquilo que ele escreveu sobre “o cuidado para com os bebês e crianças no processo inicial de desenvolvimento físico e emocional dos bebês e das crianças e, a importância fundamental da função materna e da função paterna, ou a função dos cuidadores no processo de desenvolvimento dos bebês e crianças”, as quais parecem ter sido de alguma forma relegadas ao esquecimento.

De acordo com o pensamento do autor, “o passo inicial para entender essa evidente ou evidenciada falta de interesse das crianças, adolescentes e jovens pelas atividades escolares e acadêmicas e por determinadas atividades de âmbito familiar é separar a educação formal do desenvolvimento emocional e da educação familiar”. Inicialmente se deve ter em mente de que o sucesso da educação formal dependente do que os cuidadores fizeram com os bebês e fazem com as suas crianças na educação familiar e não ao contrário!

Ao educarem uma criança os pais ou cuidadores tendem a transmitir às crianças o que faz sentido para eles: os valores, crenças religiosas pertinentes ao âmbito cultural e religioso em que nasceram, ou outros valores escolhidos em substituição àqueles sob os quais nasceram e foram formados, educados em família. Contudo, o êxito da transmissão de tais valores às crianças e a assimilação deles pelas crianças só é possível se a criança é capaz de acreditar em algo. Observa Winnicott que “o desenvolvimento desta capacidade não depende de educação, salvo se for ampliado o significado da palavra para fazê-la abarcar algo que não costuma designar. Depende da experiência que o indivíduo teve em matéria de cuidados quando era um bebê e uma criança em desenvolvimento. No qual intervém a mãe e, talvez, o pai e outras pessoas que estão em contato próximo com a criança, mas inicialmente a mãe” (Winnicott, 1968). Como se dar a intervenção materna?

mae-e-filho1A intervenção materna se faz por meio do desempenho da função materna de cuidar. Os cuidados são realizados com investimentos afetivos. Este conceito freudiano fala de investir alguém ou capacita-lo com afetos e sentimentos, os quais ele poderá utilizar sempre que precisar. A capacitação ou investimento se faz por meio da maneira de cuidar. Por exemplo, o autor chama a atenção dos pais para como atender as necessidades básicas dos bebês de fome, sede, frio, calor, higiene. Começarei escrevendo sobre os cuidados que se deve ter durante a amamentação.

A fase ou período de amamentação do bebê consiste num período no qual o bebê estar numa dependência extrema da mãe e, ou de seus cuidadores. Por isso, nesta fase inicial de suas vidas em que estão numa dependência absoluta dos cuidadores, os bebês precisam de uma mãe que esteja bem identificada com eles, que seja capaz de atender prontamente às suas necessidades. Com o cuidado recebido da mãe a continuidade da linha da vida do bebê se mantém e ele experimenta ou vive uma espécie de “continuidade do ser”, de um modo de existir estável. (Winnicott, 1990).

É importante frisar que no processo de amamentação, os espaços de tempo entre as mamadas, o tempo entre uma forma de segurar e outra vão construindo um registro de continuidade de um ser que é mantido, respeitado, não invadido. Não ser invadido significa ser compreendido a partir do que poderíamos chamar de ‘visão de mundo do bebê’, o que é possível pela adaptação ativa ao ambiente materno no qual se desenvolve o bebê (Cf. Guimarães, 2001). Se a mãe proporciona uma adaptação suficientemente boa, a criança tem uma espécie estabilidade emocional de vida, pois é muito pouco perturbada por mudanças repentinas no jeito e na forma de cuidar e, naturalmente, há poucas reações à intrusão em geral. A falha materna prolongada provoca fases de reação à intrusão e as reações interrompem o ‘continuar a ser’ do bebê, gerando uma ameaça de aniquilamento, instabilidade emocional (Winnicott, 1975). Todas as experiências que afetam o bebê são armazenadas em seu sistema de memória, possibilitando a aquisição de confiança no mundo, ou pelo contrário, de falta de confiança e suas respectivas variantes (Winnicott, 2001).

Ou ainda, de acordo com o pensamento do ERIKSON (1976),  a capacidade de confiar desenvolvida pela criança e o nível de confiança ou desconfiança da criança no mundo, nas demais pessoas e em si própria, depende em grande parte da qualidade dos cuidados que recebeu e recebe dos seus cuidadores. A criança cujas necessidades são satisfeitas logo que manifesta-as aos seus cuidadores, cujos desconfortos são prontamente atendidos, que é acariciada, com a qual se brinca e conversa, desenvolve uma noção do mundo, como sendo um lugar seguro de estar e, das pessoas, como prestativas e dignas de confiança.  Ao contrário, quando, os cuidados são irregulares, insuficientes e com a marca da rejeição, promove, a desconfiança básica, uma atitude de medo e suspeita, de parte da criança, para com o mundo, em geral e às pessoas, em particular, que permanecerá durante os estágios posteriores de desenvolvimento.

Por conseguinte, considerando que comumente as pessoas tendem a pensar e entender tudo de forma muito exata, urge aqui uma observação: uma pessoa não pode ser entendida como sendo o resultado estático da soma de estágios de desenvolvimento emocional. Ela é sim expressão de um processo dinâmico de desenvolvimento físico e psíquico. Uma criança, por exemplo, que foi educada num ambiente inadequado ou impróprio para o seu desenvolvimento emocional ou psíquico saúdavel; ou que cresceu e se desenvolveu num ambiente deficiente que não supria a sua demanda de cuidados, ela naturalmente procura em seu entorno alguém que supra as suas demandas de cuidados.

 

Bibliografia:

WINNICOTT, D. W.  A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: M. Fontes, 2001.

_______________ O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

_______________ Desenvolvimento Emocional Primitivo. In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

_______________ A natureza humana. A experiência do nascimento. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

ERIKSON, Erik. Infância e sociedade, Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

ELKIND, David. As Oito Idades do homem, segundo Erik Erikson. In: Diálogo, 11(1), 3-12, Trad.: Ana Maria B. Petersen, 1978.